Com os sucessivos recordes de temperatura registrados nos últimos anos, o morador das grandes cidades é um dos primeiros a sentir os efeitos do clima mais quente agravado pelas “ilhas de calor”, fenômeno que ocorre principalmente nas metrópoles. A concentração de asfalto e concreto, poucas áreas verdes e excesso de poluição atmosférica favorecem a elevação da temperatura. Como consequência, os trabalhos de planejamento urbano passaram a enfrentar o desafio de promover o conforto ambiental. No espaço público, as maiores aliadas são as árvores. Debaixo de uma árvore de grande porte e copa densa, a sensação térmica é muito mais baixa que poucos metros adiante: mesmo que a temperatura medida no ar seja apenas 1 ou 2 graus Celsius (ºC) mais baixa, dependendo das interações solo-superfície-atmosfera, uma pessoa experimenta o frescor de cerca de 10 a 13 ºC a menos sob a árvore. Em dias de calor, a diferença pode chegar a 20 ºC. O Laboratório de Conforto Ambiental e Eficiência Energética (Labaut) do Departamento de Tecnologia da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) desenvolve projetos que tentam entender as complexas relações climáticas nas cidades e procuram formas de tornar a vida mais confortável do ponto de vista ambiental.

“Árvores são fontes de amenidade que fazem uma diferença enorme em termos de temperatura, umidade, vento e luz”, afirma a engenheira Denise Duarte, coordenadora do Labaut e docente da FAU. No entanto, o efeito de um parque, uma praça ou mesmo uma avenida bem arborizada é apenas local. Quem se encontra nas construções imediatamente vizinhas experimenta certo alívio térmico, mas alguns pavimentos acima ou uma rua mais adiante as condições já não são iguais. Denise recomenda que o planejamento e o desenho urbano considerem uma “rede de infraestrutura verde”, com vias arborizadas, que conecte a cobertura vegetal aos demais espaços públicos da cidade.

Vice-coordenador do Labaut, o arquiteto Leonardo Marques Monteiro criou um índice de conforto térmico – Temperatura Equivalente Percebida (TEP) – adequado às condições específicas do Brasil. Internacionalmente, há mais de 100 modelos de cálculo para chegar a um índice que sirva de parâmetro para avaliar o conforto térmico. O mais utilizado, Physiological Equivalent Temperature (PET), compara a diferença de uma sensação em espaço aberto com a de um fechado. Esse modelo leva em conta a fisiologia de um corpo que corresponde à média da população da Alemanha, onde foi desenvolvido.

“Minha preocupação não foi tanto com a fisiologia do corpo, mas com o modo como as pessoas respondem”, explica Monteiro. O método utiliza grande número de entrevistas com transeuntes de diversos locais para entender as atividades praticadas ali e como os diferentes grupos sociais sentem os espaços. Os questionários contêm perguntas sobre sensação e satisfação térmica. Os resultados estão disponíveis para subsidiar pesquisas e projetos públicos ou privados. Para o pesquisador, o planejamento de uma área urbana precisa levar em conta a diversidade dessas experiências. “O uso da cidade é muito heterogêneo, há todo tipo de gente em todo tipo de situação”, afirma. “O importante é criar uma variedade de tipos de espaço, para que as pessoas escolham o que preferem.”

© EDUARDO CESAR

Corredor verde na Vila Madalena: conexões entre áreas arborizadas ampliam conforto ambiental

Corredor verde na Vila Madalena: conexões entre áreas arborizadas ampliam conforto ambiental

Idosos
Pesquisadores coordenados por Fábio Gonçalves, docente do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP, estudaram no projeto temático “Biometeorologia humana: Análise dos efeitos de variáveis ambientais (meteorológicas, conforto ambiental e poluição atmosférica) e das mudanças climáticas na população geriátrica da cidade de São Paulo”, encerrado em junho, uma parcela da população particularmente vulnerável ao calor excessivo: os idosos. Segundo Monteiro, que participa do projeto, o idoso não percebe um ambiente quente da mesma maneira que o jovem, sobretudo em condições de alta umidade, quando o suor é menos eficaz para dissipar o calor. Os idosos sentem-se em conforto, mas na realidade encontram-se em situação de estresse térmico por calor. “Melhorando a cobertura vegetal, porém, podemos obter conforto na maior parte do tempo”, afirma Monteiro.

A expressão conforto ambiental designa o estado em que alguém consegue satisfatoriamente se adaptar às condições térmicas, luminosas, sonoras e ergonômicas. Nos projetos de edifícios, o conforto ambiental é levado em conta quando se pensa em eficiência energética e exposição ao sol e ao vento. Nas áreas abertas, o problema é mais complexo. Exige a convergência de diversos campos de conhecimento, como meteorologia – em particular a biometeorologia –, geografia, arquitetura e engenharia. Segundo Denise, que participou do projeto temático, a arquitetura exerce nesse contexto um papel unificador. “Os arquitetos têm um olhar mais humanista, para além dos modelos numéricos”, diz.

A pesquisa em áreas externas exige um trabalhoso processo de medição que envolve diversos tipos de equipamento e em grande quantidade. Os pesquisadores são unânimes em lamentar que as cidades brasileiras não disponham de uma quantidade maior de estações meteorológicas. O projeto “Modelo participativo para avaliação do conforto ambiental em espaços abertos”, em andamento e conduzido pela arquiteta Alessandra Prata, docente da FAU-USP, resultou na criação de um aplicativo de celular que está sendo testado, com o qual voluntários relatam sua situação de conforto ambiental em diferentres lugares da cidade. O objetivo principal é relacionar a sensação térmica com dados de estações meteorológicas a serem instaladas em diversos espaços urbanos, e com isso fornecer informações para basear políticas públicas.

Sucessão de espaços
Para Denise, são raros os casos de cidades brasileiras com bom planejamento de conforto ambiental. Nas metrópoles, encontram-se eventuais pontos que, segundo ela, funcionam como oásis. Ela cita os parques urbanos arborizados, como o Trianon, em São Paulo, um alívio em dias de calor intenso na avenida Paulista. “Mas esses pontos são poucos, desconectados e insuficientes. Há grandes áreas da cidade sem nenhuma vegetação.”

A perspectiva da continuidade é importante. “O que falta é um planejamento que crie uma sucessão de espaços arborizados, como oásis urbanos, para que os deslocamentos sejam mais confortáveis”, indica a pesquisadora. A cobertura vegetal, com boa ventilação natural e equilíbrio satisfatório entre espaços sombreados e ensolarados, é o fator principal para o alívio térmico, podendo ser complementada por pergolados (estruturas que dão sustento a trepadeiras) e pela presença de cursos ou espelhos d’água.

© EDUARDO CESAR

Concentração de prédios na região central de São Paulo e Parque da Aclimação, na zona sul: cobertura desigual

Concentração de prédios na região central de São Paulo e Parque da Aclimação, na zona sul: cobertura desigual

Para cada tipo de clima é preciso pensar o tipo de árvore adequado. Em 2012, por ocasião da conferência Rio+20 sobre o clima, da Organização das Nações Unidas (ONU), foi inaugurado no bairro de Madureira, zona norte do Rio de Janeiro, um parque que aproveitava a área de antigas linhas de transmissão de eletricidade. Madureira tinha cerca de 50 mil habitantes e menos de 1 m2 de espaço verde por habitante. A Sociedade Brasileira de Arborização Urbana recomenda 15 m2. O Parque Madureira tem 93 mil m2, com árvores nativas, pergolados e espelhos d’água para garantir o sombreamento e a umidade. No entanto, Denise e Monteiro criticam a falta de sombreamento e a escolha de espécies, com um número excessivo de palmeiras. “No Parque Madureira há vários acertos, como a presença de água de forma lúdica, mas palmeiras, pelo formato da copa, não proporcionam uma sombra de boa qualidade”, afirma. “Por causa disso, as áreas pavimentadas podem atingir temperaturas de superfície muito altas.”

Segundo a pesquisadora, o exemplo positivo está na Alemanha, cujas leis de planejamento urbano preveem obrigações de proteção climática, mencionam expressamente a mitigação dos efeitos do aquecimento global desde 1976 e tratam da adaptação às transformações do clima. No Brasil, mesmo os planos diretores, as leis de uso e ocupação do solo e os códigos de obras e edificações de construção das cidades são pouco rigorosos em questões ambientais, afirma Denise.

A doutoranda em arquitetura na FAU Luciana Schwandner Ferreira, que se especializa em áreas verdes, afirma que os índices de arborização podem ser enganosos, porque tomam como dado homogêneo uma cobertura desigual. “A maior parte das árvores de São Paulo está em lugares como Parelheiros e Cantareira”, declara, referindo-se a bairros afastados do centro e das ilhas de calor. Em sua pesquisa, ela usa dados de satélite para medir os impactos da perda de vegetação nos últimos anos sobre a temperatura de superfície, a temperatura do ar e a umidade do ar da Região Metropolitana de São Paulo. A intenção é que os dados coletados sejam entregues ao poder público, podendo ser usados para elaborar diretrizes de arborização da cidade.

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Projetos
1. Biometeorologia humana: Análise dos efeitos de variáveis ambientais (meteorológicas, conforto ambiental e poluição atmosférica) e das mudanças climáticas na população geriátrica da cidade de São Paulo (nº 2010/10189-5); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Projeto Temático; Pesquisador responsável Fábio Luiz Teixeira Gonçalves (IAG-USP); Investimento R$ 671.390,00.
2. Modelo participativo para avaliação do conforto ambiental em espaços abertos (nº 2015/19484-3); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Alessandra Rodrigues Prata Shimomura; Investimento R$ 121.489,00.

Fonte: Revista Pesquisa Fapesp

(http://revistapesquisa.fapesp.br/2016/08/19/o-calor-das-cidades)